Hoje Regis Tadeu critico musical e jurado do programa Raul Gil fez a seguinte postagem no Portal Yahoo:
Não fui ao Monster
of Rock que rolou ontem e anteontem aqui em São Paulo pelo mesmo
motivo que todo mundo que lê o que escrevo aqui já sabe: não tenho mais saco
para festivais, muito menos para eventos deste tipo que trazem um grande número
de bandas que já assisti em passado não tão recente. Para piorar, recebi
dezenas de relatos a respeito da falta de organização na entrada e na saída do
público – filas de mais de duas horas para entrar no Anhembi e para sair dele
-, o que levou muita gente a perder shows à tarde e a chegar em casa de
madrugada. Fora a comida sempre ruim e cara, filas quilométricas para banheiros
químicos e outros ‘perrengues’ que não tenho mais tolerância em suportar. Pelo
preço cobrado no ingresso, isto é uma vergonha que parece não ter fim…
Só que hoje o assunto
que quero tratar aqui é outro…
Tenho que confessar
que não fiquei surpreso ao saber que Lemmy não conseguiu subir ao palco com o
seu Motörhead, o que obrigou ao cancelamento da apresentação, substituída
parcialmente por uma “mini jam session” com a presença do baterista
Mikkey Dee e do guitarrista Phil Campbell ao lado de alguns integrantes do
Sepultura. Já faz tempo que ele está MUITO doente – sim, frisei a palavra para
deixar bem claro para quem ainda não acredita – e a dependência financeira que
ele e seus amigos têm da grana levantada pelos shows impede que o trio fique um
tempo longe dos palcos para que seu líder se recupere. Só que isto não vai
acontecer…
Infelizmente, sou
obrigado a dizer o que ninguém tem coragem: Lemmy está morrendo.
Um dos últimos
baluartes da trindade de artistas que parecem indestrutíveis mesmo depois de
décadas e décadas de todos os excessos que você possa imaginar em termos de
drogas e bebidas, ao lado de Keith Richards e Iggy Pop, Lemmy vem mostrando
acelerado estado de deterioração física nos últimos meses mesmo para um cara de
70 anos de idade.
O que começou com o
surgimento de uma alergia a uma determinada fruta semelhante à framboesa – sim,
é isto mesmo o que você acabou de ler! – se transformou em reações alérgicas
cada vez mais graves e que acabaram afetando o coração de Lemmy. Depois de uma
cirurgia cardíaca e da imposição de uma mudança total no seu hábito etílico –
ele tinha que parar de beber, cheirar e fumar de maneira radical e rápida -,
Lemmy ameaçou deixar seus vícios de lado, mas não resistiu. Relatos dão conta
que ele substituiu as doses cavalares de Jack Daniels com Coca-Cola que tomava
diariamente por vodka com suco de laranja e que, digamos assim, ele não parou
totalmente com tudo o que devia. Foi por isto que ele acabou desidratado e com
distúrbios gástricos sérios no sábado, o que o levaram a uma internação em um
hospital aqui em São Paulo.
De minha parte, só tenho a lamentar
tudo isto. Não serei louco de negar a realidade e pensar que Lemmy tem muitos
anos de vida pela frente. Não tem. E é por isto que faço aqui minha homenagem a
ele. Enquanto ele ainda está vivo e respirando por sobre este planeta miserável
e lindo ao mesmo tempo.
Vou fazer isto também
ao resgatar um texto perdido que escrevi a respeito dele há muitos anos aqui no
Yahoo!, no qual trouxe considerações a respeito de como a sua figura se tornou
eterna dentro da história do rock.
Quando ele se for,
não precisarei fazer como todo mundo e escrever mais um dentre os milhares de
obituários que serão publicados as respeito dele. Hoje trago aqui a minha
homenagem. Em vida.
É inexplicável. Bem,
pensando com um pouco mais de racionalidade, talvez não seja tão inexplicável
assim o verdadeiro fascínio que a figura de Ian “Lemmy” Kilmister exerce em
qualquer pessoa que ame o rock and roll. E quando escrevo “qualquer pessoa”,
não estou sendo bondosamente genérico, mas afirmando categoricamente que não há
um ser humano roqueiro sequer que: a) não tenha o devido respeito e paixão pelo
Motörhead; b) que não considere “Lemmy” como uma espécie de divindade.
No fundo, é fácil e
difícil – e desconcertante – ao mesmo tempo entender porque a figura de Lemmy
suscita reverência. Para isto, é preciso deixar de lado os pudores
politicamente corretos e encarar a verdade: no fundo, bem lá no fundo, todos
nós queremos ser como Lemmy.
Buscamos obter o
mesmo grau de respeito que a sua figura e suas palavras causam nas pessoas.
Buscamos causar a mesma sensação que Lemmy propicia quando entra em qualquer
ambiente, que é um silêncio que chega a ser ensurdecedor. Buscamos envelhecer
como Lemmy, dono de seu próprio nariz e sem a menor intenção de agradar a quem
quer que seja.
Com seu inseparável
chapéu preto, roupas de coloração idem e as inacreditáveis botas brancas, Lemmy
é uma versão roqueira e real do cowboy sem nome eternizado por Clint Eastwood
no cinema. Para os adolescentes, ele é um personagem de histórias em quadrinhos
– ou videogame, se preferir – que ganhou vida. E se o Motörhead existe ainda
hoje é porque Lemmy comandou as coisas da maneira que leva a sua vida:
integridade em relação a tudo aquilo em que acredita. Quer uma prova disto?
Assista ao espetacular DVD Lemmy (49% Motherfucker, 51% Son of a Bitch).
Nos shows, noventa
minutos transcorrem com uma rapidez supersônica. A famosa saudação de abertura
de cada uma das apresentações que a banda faz – “Nós somos o Motörhead. E a
gente toca rock ‘n’ roll” – já faz parte do panteão das grandes frases da
história da música, recebida com o mesmo entusiasmo dedicado a qualquer um dos
438 clássicos do repertório do trio. E quando você é testemunha de uma
apresentação que começa com uma dobradinha do naipe de “Iron Fist” e “Stay
Clean”, é inevitável sentir certa vergonha ao ver a palavra “rock” associada a
grupelhos formados por gente sem talento e sem um pingo de carisma.
Ao lado de Lemmy
estão o comedimento e exuberância sônica do guitarrista Phil Campbell – no
show, há um “momento solo” em que ele desfila uma sucessão de notas
surpreendentemente sublimes para o conceito ensurdecedor do trio. E atrás de
ambos há a energia aparentemente inesgotável do baterista Mikkey Dee, cuja
fúria ao tocar seu instrumento faz uma locomotiva desgovernada parecer um
carrinho de supermercado com as rodinhas enferrujadas. Os dois formam os
adereços perfeitos para a mitológica presença de palco de Lemmy, tocando seu
baixo como se fosse um violão de acampamento e extraindo timbres que qualquer
baixista daria o braço esquerdo para conseguir. É impossível ouvir
canções como “Going to Brazil”, “Ace of Spades” e “Overkill” (veja aqui) e não
chacoalhar o esqueleto como se estivéssemos tomando um banho gelado sentado em
uma cadeira elétrica.
Certa vez, quando era
editor das revistas Cover Guitarra e Cover Baixo, fiz minha única entrevista
com Lemmy, uma das melhores em toda a minha carreira como profissional da
música. Quando terminamos as questões a respeito de equipamentos e de todos os
assuntos a respeito do Motörhead, ficamos ainda um bom tempo conversando sobre
outros assuntos, incluindo os motivos que nos levaram a gostar de Beatles,
psicodelia dos anos 60 e 70, livros e… ABBA! Foi inacreditável: passamos uns
bons minutos discutindo a respeito de qual foi o melhor disco do quarteto
sueco. Suas observações eram tão impagáveis quanto difíceis de entender – Lemmy
tem um dos sotaques mais indecifráveis do planeta.
Em outra ocasião, ao
entrevistar Dave Grohl na época em que estava lançando o disco de seu projeto
Probot, ouvi a frase que resume perfeitamente o que Lemmy realmente representa
no imaginário de cada um de nós. Quando perguntei a ele sobre a participação do
baixista no projeto, Grohl explicou como aquilo havia acontecido e encerrou com
a seguinte exclamação: “Pau no c… do Elvis Presley! O rei do rock é o Lemmy!!!”