Quando uma banda de rock
morre, os fãs lamentam copiosamente porque, quase sempre, acontece cedo demais
--e, algumas vezes, vem com uma fogueira de vaidades entre vocalista e
guitarrista. Mas quando é o Black Sabbath que anuncia gloriosamente a própria
morte, 46 anos (e oito vocalistas e 25 músicos) após seu início, é mais
aconselhável abrir um bom uísque para brindar. Porque é natural que isso
aconteça como uma festa, como a celebração do fim do segundo tempo de uma prorrogação
infinita, como aqueles funerais de vikings no qual o morto vai para o mar em
uma pira em chamas toda florida e decorada.
O anúncio da última turnê do Black Sabbath, "The
End", foi divulgado na quinta-feira (3) em vídeo e veio com
esse componente de eufórica celebração. O fim de tudo começa no dia 20 de
janeiro de 2016 em Omaha, Nebraska. Por enquanto, vai até dia 30 de abril, na
Nova Zelândia. O "mais pesado som de rock jamais ouvido", como diz o
vídeo, não tem data para passar pelo Brasil, mas novas datas ainda serão
anunciadas.
É
natural o tom grandiloquente da despedida: a sobrevida de sua formação original
(sem o baterista Bill Ward) já fora uma vitória da longevidade. Na sua última passagem pelo Brasil, há três anos, o
guitarrista Tony Iommi, tratando-se de um linfoma, recebia
quimioterapia a cada seis semanas. Em abril passado, o próprio Ozzy Osbourne
disse duvidar de qualquer agenda de turnês com a sua mítica banda num futuro
próximo. "Tony não está legal, não pode fazer planos desse tipo".
É
chover no molhado ressaltar a importância e a influência do Sabbath para o
futuro. Eles não só inventaram o heavy metal como o conhecemos, mas também
todas suas subformas: stoner rock, doom metal, sludge metal. Também
materializaram a cenografia do gênero, criando os crescendos ameaçadores de
baixo e bateria, os ataques inesperados de guitarra, os vapores sombrios que
trouxeram um contraponto à inocência da geração hippie.
Também
foram os caras que gestaram o rock and roll sem freio de mão, sem passagem de
retorno. "Nunca entre pela porta se você pode atravessar a janela de
vidro", dizia Ozzy Osbourne em 1977, no auge de sua consumação pelas
drogas e pelas legiões de groupies. Eles estão para o rock como Hieronymus
Bosch está para a pintura: estetizaram o pesadelo de sua época, que é o sonho
ruim de todas as épocas subsequentes, daí sua atualidade. "Você consegue
ouvir o desespero e o perigo das ruas de Birmingham proletária vindo de cada
groove deles", disse certa vez o guitarrista Tom Morello, do Rage Against the Machine.
"As
pessoas sentem coisas ruins, mas ninguém canta sobre o que é assustador e
mau", disse em outro momento o baixista Geezer Butler. "O mundo é uma
porra de uma zona, e todo mundo canta sobre as coisas boas. Tentamos aliviar
toda a tensão nas pessoas que nos ouvem para tirar tudo de seus corpos. Todo o
mal e essas coisas".
Milagres do Sabbath
Na
quinta-feira, o guitarrista dos Rolling Stones,
Keith Richards, em seu estilo costumeiro, causou ao chamar o Sabbath (e outros
grupos, como o Metallica) de "uma grande piada". Um provocador que
levasse Richards a sério poderia responder: "Keith, experimente recomeçar
sua carreira com dois dedos a menos e ver até onde você vai". Tony Iommi
perdeu as pontas de dois dedos numa prensa de metal antes mesmo de começar sua
vida artística.
Um
outro milagre causado pelo Black Sabbath durante sua trajetória tem sido uma
espécie de multidisciplinaridade social: seu público, diferentemente dos
colegas de geração, cuja plateia elitizou-se com o tempo, é um dos mais
heterogêneos. Apesar de cultuado pelos camisetas-pretas do metal, junta
descamisados e playboys, empresários e office-boys, patricinhas e riot girrrls
de botinha. É uma música que aproxima os guetos, os dissolve e desfronteiriza,
uma nação sem alfândega.
Triste
que uma doença como o câncer está penalizando os últimos momentos dessas lendas
do rock pagão, como o AC/DC (que teve de tirar Malcolm Young dos planos
futuros). O próprio Sabbath viu a morte diversas vezes em sua vida. O baterista
Cozy Powell sofreu uma queda de um cavalo quase fatal. Um dos seus
ex-vocalistas sagrados, Ronnie James Dio, morreu de câncer. O
guitarrista Randy Rhoads, que era da banda solo de Ozzy, morreu
em um acidente de avião.
O
Sabbath não vai para o céu. Nem tem lugar garantido no recesso, porque tem
certas naturezas humanas que não combinam com o retiro e a placidez. Ozzy é uma
delas. "Você vive em Beverly Hills e poderia se aposentar. Mas que bosta
eu vou fazer? Olhar pela janela o dia todo?", questionou-se certa vez.
Certamente é melhor rezar para ele continuar com a carreira solo, ou vai
infernizar a vida dos vizinhos.